"Não existe revelação mais nítida da alma de
uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças”, disse certa vez
Nelson Mandela. À luz dos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), celebrados
neste 13 de julho, vale refletir sobre a afirmação.
O Estatuto foi gestado no fim da década de 1980,
num contexto de redemocratização pós-ditadura, período de retomada das
liberdades democráticas. No lugar do regime autoritário, anseios por uma
administração mais participativa. Discutia-se a necessidade de impor limites ao
Estado e ampliar os mecanismos de envolvimento da sociedade civil organizada na
condução dos rumos do país.
A Assembleia Nacional Constituinte, instalada entre
1987 e 1988, respondeu a esse processo de intensa participação popular e
coletou experiências e iniciativas por todo o território nacional. Cartas
encaminhadas pela população sugeriam as diretrizes para a nova Constituição
enquanto movimentos sociais pautavam a afirmação de direitos e a ampliação do
exercício da cidadania.
A Constituição de 1988 estabeleceu a mais detalhada carta
de direitos de nossa história, que incluiu garantias civis, políticas,
econômicas, sociais e culturais, e isso significou um enorme avanço conceitual
e jurídico para a promoção dos direitos humanos no Brasil.
Também o ECA veio na esteira desse debate. A
mudança de paradigma da tutela para a proteção integral representava, então, não apenas uma
nova forma de encarar crianças e adolescentes; mais do que isso, era um tratado
sobre a sociedade que queríamos ser — após duas décadas de opressão militar, os
brasileiros diziam não a um modelo que higieniza, recolhe e encarcera, que
criminaliza a pobreza, que culpabiliza as vítimas da omissão e ineficiência
estatal. E por olhar para o passado reconhecendo nossos próprios erros e
desejando mudar o futuro, fomos capazes de elaborar um documento à frente de
seu tempo, que envia uma mensagem sobre a necessidade de se considerar a
proteção aos direitos de meninos e meninas como uma pauta central para o
desenvolvimento do país.
A forma como tratamos nossas crianças é um retrato
da sociedade que somos (e que queremos ser), como bem afirmou Mandela.
Reconhecer meninas e meninos como sujeitos de direitos muito contribuiu para
que nos tornássemos uma nação um pouco menos desigual ao longo desses 25 anos,
para que a educação básica fosse universalizada, para que os índices de
desnutrição e mortalidade infantil reduzissem, para que fosse assegurado a
todas as gestantes o atendimento pré-natal.
O Estatuto surge no seio da institucionalização dos
direitos humanos no Brasil. Que ele seja questionado e atacado em meio a um
cenário de recrudescimento conservador não parece banal. A aprovação pela
Câmara dos Deputados, em primeiro turno, da Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a idade penal de 18
para 16 anos, é mais um risco de retrocesso, em meio a tantas violações a que
temos assistido.
Se o ECA hoje sofre essa crise de legitimidade, é
preciso aprender com a história. A luta por direitos nunca foi tarefa fácil,
mas, entre meados dos anos 1980 e início da década de 1990, os atores da área
da infância estavam organizados na batalha pela adesão da opinião pública —
saíam às ruas para passeatas, construíam argumentos populares, convocavam
meninos e meninas para se expressarem por meio de sua própria voz, enfrentavam
disputas jurídicas, negociavam com parlamentares, buscavam visibilidade
midiática, montavam bancas para coletar assinaturas —, e assim conseguiram
encampar a emenda de iniciativa popular com o segundo maior número de
apoiadores durante a Constituinte.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma das
legislações mais avançadas do mundo, tendo servido de modelo para a
implementação de leis semelhantes em vários países, sobretudo na América Latina.
Há 25 anos, estávamos na vanguarda. E hoje, onde
estamos? E onde queremos estar nas próximas duas décadas e meia? A resposta
está na infância. Como afirma o teórico norte-americano Neil Postman, “as
crianças são as mensagens vivas que enviamos a um tempo que não veremos”.
Ainda é possível virar o jogo, mas é preciso seguir
lutando.
*Bárbara Pansardi é jornalista, trabalha na ONG Oficina de
Imagens e escreve para a revista "Rolimã - em defesa dos direitos da criança e do adolescente".
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